segunda-feira, 1 de novembro de 2010

A Música e o Surdo

Será que é possível pensarmos na realidade deste tema: “A música e o surdo”?
No mínimo, para nós ouvintes, é instigante pensarmos em tal coisa. Porém, por incrível que pareça é possível.
Convivo com surdos há mais ou menos 16 anos e sempre trabalhando com música seja interpretando para LIBRAS ou trabalhando com grupos de surdos para dançar fazendo coreografias ou em reuniões de confraternização em fim de cursos, sempre cantamos em LIBRAS e dançamos.
Também em alguns congressos nos quais termino de interpretar, sempre recebo manifestações e partilhas de surdos expressando grande emoção em poder sentir e ver música e sua poesia – alguns chorando me agradecem por poderem sentir a música pela primeira vez.
Creio que Deus me presenteou com esse talento. Quando comecei a aprender LIBRAS e depois decidi estudar para ser interprete um dos objetivos que me motivou é o de ser instrumento para que o surdo tenha acesso a tudo o que lhe é de direito, como nós ouvintes.
A música é universal. Na maioria das vezes não é preciso explicar; apenas sentir. E como essa fantástica arte pode chegar até o surdo?
Para que se entenda de maneira clara ainda reconhecendo que é surpreendente e fantástico o modo como o ser humano desenvolve suas habilidades de forma espetacular para que assim possa desfrutar as coisas belas da vida e celebrar os sentimentos mais profundos que possa sentir; e ainda mais: expressa-los através da musica.
O trecho abaixo extraído do livro ‘O Vôo da Gaivota’ descreve o modo singular que uma surda francesa, Emmanuelle Laborit, consegue explicar as interpretações de sons e música. Ela nos permite uma boa compreensão desse fenômeno.
“O silencio tem pois um sentido exclusivamente meu, o de ser a ausência de comunicação. Em outras palavras nunca vivi no silencio completo. Tinha meus barulhos pessoais, inexplicáveis para quem escuta. Tenho minha imaginação , e ela tem sons em cores. Meu silencio tem, para mim, cores, nunca é preto e branco.
Os barulhos dos que escutam são também imagens para mim, sensações. A onda que rola sobre a praia, calma e doce, é uma sensação de serenidade, de tranqüilidade. Aquela que se eriça e se precipita com as costas lançadas para o alto é a cólera. (...) Há sempre uma ligação entre cores e os sons que imagino. Não posso dizer se som que imagino é azul ou verde ou vermelho, mas as cores e a luz são suportes para imaginar o barulho, para a percepção de cada situação (...).
Quando meu pai soube que eu era surda, imediatamente perguntou como eu faria para escutar musica. Levando-me aos concertos, quando ainda era pequena, queria me transmitir sua paixão; ou então ‘recusava’ que fosse surda. De minha parte, achava isso ótimo. É ótimo que ele não tenha colocado obstáculos entre mim e a musica. Creio que percebo profundamente a musica; não com o ouvido: com meu corpo. Meu pai sempre teve a esperança de me ver acordar de um longo sono.  Como a Bela Adormecida. Estava convencido de que a musica iria operar essa mágica. Já que eu vibrava com a música, e que ele era louco pela música, a clássica, o jazz, os Beatles, levava-me aos concertos, e cresci acreditando que podia partilhar tudo aquilo com eles.
Uma tarde, meu tio Fifou, que era musico, tocava violão. Vejo-o, a imagem é nítida em minha cabeça. A família inteira escutava. Ele queria dividir o violão comigo. Pede que morda o braço do instrumento. Mordo-o, e ele se põe a tocar. Fico por muito tempo segurando. Sinto todas as vibrações no meu corpo, as notas agudas e as notas graves. A música entra no meu corpo, instala-se, começa a brincar com meu interior. Mamãe olha completamente maravilhada. Tenta fazer a mesma coisa, mas não consegue. Diz que aquilo ressoa na cabeça.
Há ainda a marca dos meus dentes no violão do meu tio.
Tive a sorte, na minha infância, de ter contato com a música. E certos pais de crianças surdas dizem que não vale à pena, e privam seus filhos da musica. De minha parte, adoro-a. Sinto as vibrações. O espetáculo de um concerto me influencia também. Os efeitos de iluminação, o ambiente, as pessoas na sala são também vibrações. Sinto que estamos todos juntos para a mesma coisa. O saxofone que brilha com clarões dourados é formidável. Os trompetistas que inflam as bochechas. Os violoncelistas. Sinto-os com os pés, com todo o corpo se estiver estirada no solo. E imagino o som, sempre o imaginei. É através do meu corpo que percebo a música. Os pés nus sobre o chão, presos às vibrações, é assim que a vejo, em cores. O piano tem cores, a guitarra elétrica, os tambores africanos. A bateria. Vibro com eles. Mas o violão levanta vôo, deve ser agudo como um pássaro, como um canto de pássaro, é inapreensível,é uma coisa das alturas, em direção ao céu, não em direção à terra. Os sons do espaço devem ser agudos, os sons da terra devem ser graves. E a música é um arco-íris de cores vibrantes. Amo profundamente a música africana. O tantã é uma música que vem da terra. Sinto-a com os pés, com a cabeça, com o corpo inteiro. Da música clássica, não gosto. É muito nas alturas. Não posso alcançá-la.
A música é uma linguagem além das palavras, universal. É a arte mais bela que há, consegue fazer vibrar fisicamente o corpo humano. É difícil reconhecer a diferença entre a guitarra e o violão. Se tivesse vindo de outro planeta e encontrasse homens que falassem de uma maneira diferente, estou certa de que conseguiria compreende-los percebendo seus sentimentos. Mas o campo da música é muito vasto, imenso. Muitas vezes, me perdi nele. Isso acontece no interior do corpo. As notas se põem a dançar. Como o fogo de uma lamparina. O fogo com seu ritmo, forte, fraco, mais rápido, mais lento... Vibração, emoção, cores em ritmo mágico.
As vozes dos cantores são, entretanto, um mistério. Uma só vez o mistério se desfez. Não sei quando, nem com que idade. É como se fosse no presente. Vejo a Callas na televisão. Meu pai a assistem está sentada com eles diante da tela. Vejo uma mulher forte, que parece ter um caráter forte. De repente, uma imagem em primeiro plano, e sinto realmente a sua voz. Olhando-a com intensidade, percebo a voz que deve ter. Imagino uma canção na alegre, mas vejo bem que a voz vem do fundo, de longe, que aquela mulher canta com seu ventre, com suas entranhas. Isso me causa um efeito terrível. Escutei realmente a sua voz? Não sei dizer. Mas senti realmente uma emoção foi a única vez em que se passou uma coisa desse tipo. Maria Callas me tocou. Foi a única vez em minha vida que senti, imaginei, uma voz cantando.
Os outros cantores não me causam nada de especial. Quando os vejo, nos clipes da televisão, sinto muita violência, muitas imagens que se sucedem, não entendo nada. Não chego mesmo a imaginar que a música possa fazer de tal maneira aquilo tudo vai rápido. Mas há certos cantores como Carole Laure, Jacques Brel, Jean-Jacques Goldman, cujas letras me emocionam.
E Michael Jackson! Quando o vejo dançar, é um corpo elétrico, o ritmo da música é elétrico, associo-o a uma imagem elétrica, sinto-o elétrico.
A dança está no corpo. Adolescente, adorava ir a boates com meus amigos surdos. É o único lugar onde se pode entrar a fundo na música sem se preocupar com outros. Dançava durante a noite toda, o corpo era levado até seus limites, vibrando com o ritmo. Os outros, s ouvintes, olhavam-me espantados. “Deviam pensar que estava louca.”

No mês de Junho passado recebi um convite para traduzir uma música (Climb Every Mountain) para LIBRAS.
O convite veio de Eloísa Baldin cantora lírica e responsável pelo evento em comemoração aos 70 anos do Coro Lírico Municipal de São Paulo.
Em resumo, o que era pra ser apenas uma música para o Coro Lírico finalizar o 1º ato estendeu-se o convite para que eu e minha filha, Naiane Olah, interpretássemos o espetáculo inteiro.
Com muita emoção, lembrei do meu objetivo em ser intérprete e aceitei o convite.
Foi um grande desafio, mas ao pensar que tal feito seria um fato histórico e pensar na possibilidade que um local que até então usado para contemplar a voz e o ouvido humano a LIBRAS estaria no mesmo nível e que muitos surdos pela 1ª vez poderiam entrar no teatro municipal de São Paulo e admirar música popular brasileira, americana, e lírica com trechos de óperas tão famosas como: Otello, Macbeth, Turandot, e ainda a apresentação de músicas orquestradas pela orquestra sinfônica municipal de SP com arranjos e regência do Maestro Mario Zaccaro. Foi um desafio e tanto.
Mas para nossa alegria e realização a terminar o espetáculo, o teatro inteiro estava de pé aplaudindo; os ouvintes extremamente emocionados e comovidos em ver a arte musical vista na cultura ouvinte e para maioria dos surdos presentes sentida pela primeira vez não só pela vibração, mas com poesia, com luz, com tradução e interpretação para LIBRAS.
Que tal saber deles o que sentiram? Segue alguns depoimentos que recebi de alguns surdos: (os depoimentos foram transcritos na íntegra respeitando a forma como o surdo escreve a língua portuguesa sendo essa sua segunda língua)

“Como eu escuto mais ou menos, eu ouvir, sentir a música e vendo as faces das pessoas que fizeram as expressões e achei lindos. Surdo consegue sentir pela vibração da música e tradução próprio de libras da música e poesia, os surdos se emocionam.” (surda Cintia Rosa Tarifa -)

“Pela primeira vez fui assistir a um espetáculo de música, o Coral Lírico do Teatro Municipal que contou com a atuação de duas intérpretes (Lilian e Naiane).
Quando a música do coral começou, adorei ver as duas intérpretes, mas eu não consegui sentir a vibração da música. Eu estou acostumado a sentir a vibração do samba, mas o coral é diferente, o som é baixinho. Embora eu não gostasse de usar aparelhos auditivos, resolvi emprestar um aparelho do meu amigo Leonardo Ulmann e comecei a escutar a música do coral. Fiquei muito emocionado, pois era suave e calmo. Gostei demais e agora voltei a usar aparelhos auditivos (rsrsrs).
Desejo os parabéns aos músicos, às duas intérpretes (Lilian e Naiane) e aos diretores e organizadores desta apresentação cultural no Teatro Municipal que foi um grande sucesso!!!”
Paullo Vieira – Surdo
Assistente Técnico
Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida de São Paulo



“Eu nunca tinha ido em um teatro, pois sempre pensei que seria algo que não entenderia, algo destinado aos ouvintes.
Ao ser convidada para o Coral Lírico realizado no Teatro Municipal, com interpretes de LIBRAS, Lilian e Naiane, resolvi ir, mas sem achar que poderia me impressionar.
Começando a peça, realmente me senti emocionada, as intérpretes fizeram um excelente trabalho acompanhando o coral e os efeitos das luzes, como o anoitecer, o vento, me fizeram sentir mais próxima do espetáculo. Consegui, também, acompanhar o coral com as vibrações
Todos esses pontos fizeram com que eu pudesse sentir emocionada com o coral, as intérpretes conseguiram fazer com que eu entendesse a peça, foi uma experiência incrível, gostaria de poder assistir outras peças com intérpretes
Parabéns a todos que organizaram este evento, ficou nota 10.” (Laila Sankari de Camargo Rosa – surda)

Ainda há muito que aprender e conhecer na área da surdez.
Sei que já existe um método para ensinar música que se utiliza de sinais da Língua de Sinais.
Tenho um amigo que se chama Carlos; ele é surdo e está praticamente cego. E apesar disso, é dançarino num grupo de surdos de hip hop, tem curso de panificação e está se formando em massoterapia.
Creio que não devemos ficar pensando apenas nas limitações e sim no que é possível realizar.
A auto-superação é para todos. na possibilidader que tal feito seria um fato histnti realmente uma emoç que a voz vem do fundo, de longe, que aquela mulher canta com seu ventre, azer a mesma coisa maravilhada. tenta brinar com meu ido que podia partilhar tudo aquilo com eles.