sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Quem é o surdo?

"O Surdo não é mudo, não é deficiente, não é alienado mental e também não é uma cópia mal feita do ouvinte. Ele é Surdo, humano, autor e ator de inúmeros personagens...".


Maria Cecília de Moura / fonte: APAS - Jaboticabal -SP

Quem é o surdo?

As Diferenças Humanas
Depoimento citado por Perlmutter (1986, apud Padden & Humphies, op.cit.), descrito por Sam Supalla, surdo.

Sam nasceu numa família surda com muitos irmãos surdos mais velhos que ele e, por isso, demorou a sentir a falta de amigos. Quando seu interesse saiu do mundo familiar, notou, no apartamento ao lado do seu, uma garotinha cuja idade era mais ou menos a sua. Após algumas tentativas, se tornaram amigos. Ela era legal, mas era esquisita: ele não conseguia conversar com ela como conversava com seus pais e irmãos mais velhos. Ela tinha dificuldade de entender gestos elementares! Depois de tentativas frustradas de se comunicar, ele começou a apontar para o que queria ou, simplesmente, arrastava a amiga para onde ele queria ir. Ele imaginava como deveria ser ruim para a amiga não conseguir se comunicar, mas, uma vez que eles desenvolveram uma forma de interagir, ele estava contente em se acomodar às necessidades peculiares da amiga. Um dia, a mãe da menina aproximou-se e moveu seus lábios e, como mágica, a menina pegou a sua casa de boneca e moveu-a para outro lugar. Sam ficou admirado e foi para sua casa perguntar à sua mãe sobre, exatamente, qual era o tipo de problema da vizinha. Sua mãe lhe explicou que a amiga dele, bem como a mãe dela, eram ouvintes e por isso não sabiam sinais. Elas falavam e moviam seus lábios para se comunicar com os outros. Sam perguntou se somente a amiga e a sua mãe eram assim e sua mãe lhe explicou que era sua família que era incomum e não a da amiga. A outras pessoas eram como sua amiga e a mãe. Sam não possuía a sensação de perda. Imerso no mundo de sua família, eram os vizinhos que tinham uma perda, uma desabilidade de comunicação.

Quebrar o paradigma da deficiência é enxergar as restrições de ambos: surdos e ouvintes. Por exemplo, enquanto um surdo não conversa no escuro, o ouvinte não conversa debaixo d’água; em local barulhento, o ouvinte não consegue se comunicar a menos que grite e, nesse caso, o surdo se comunica sem problemas. Além disso, o ouvinte não consegue comer e falar ao mesmo tempo, educadamente e sem engasgar, enquanto o surdo não sofre essa restrição.

Nelson Pimenta (2001:24), ator surdo brasiliense, declara que a surdez deve ser reconhecida como apenas mais um aspecto das infinitas possibilidades da diversidade humana, pois ser surdo não é melhor ou pior do que ser ouvinte, é apenas diferente. Se considerarmos que os surdos não são ouvintes com defeito, mas pessoas diferentes, estaremos aptos a entender que a diferença fisica entre pessoas surdas e pessoas ouvintes gera uma visão não limitada, não determinística de uma pessoa ou de outra, mas uma visão diferente de mundo, um ‘jeito ouvinte de ser’ e um ‘jeito surdo de ser’, que nos permite falar em uma cultura da visão e a outra da audição.

Skliar (1998:28) declara que caracterizar a cultura surda como multicultural é o primeiro passo para admitir que a comunidade surda partilha com a comunidade ouvinte do espaço físico e geográfico, da alimentação e do vestuário, entre outros hábitos e costumes, mas que sutenta em seu cerne aspectos peculiares, além de tecnologias particulares desconhecidas ou ausentes do mundo ouvinte cotidiano.

A patir das citações e informações sobre a identidade e cultura surda acima, apresentam-se algumas dicas e maneiras eficazes de como se comunicar corretamente com o surdo, e compreender sua cultura:
Ø  Fale de frente, claramente e pausadamente com o surdo. Uma boa articulação dos lábios pode facilitar a comunicação. Lembrando que a atividade da leitura labial é muito cansativa e requer muita habilidade e conhecimento do contexto da conversa, da pronúncia de outras pessoas, iluminação, distância, e que há palavras com a mesma articulação (exemplo: mala, bala, tala).
Ø  Não olhe para o outro lado ao conversar. O contato visual é importante. Quando se fala com um surdo e não se olha para ele, fica parecendo que a mensagem não é para ele.
ü  Obs: o olhar fixo e prolongado do surdo, durante a conversa, pode incomodar o ouvinte.
Ø  Não é preciso gritar. Use o labial com tom de voz normal ou, de preferência, sem som nenhum.

             Foto: Claudia Hayakawa

Ø  O surdo não pode perceber mudanças de tons ou de emoções através da voz. É preciso ser expressivo para demonstrar seus sentimentos.
ü  Obs: As pessoas ouvintes utilizam determinados gestos quando estão nervosas. A língua de sinais, que se baseia em gestos, poderá deixá-los com uma sensação desagradável porque alguns sinais serão entendidos por eles como feios, mesmo que na realidade, estejam expressando outra coisa.

Ø  Se você não entender o que uma pessoa surda está falando, não tenha vergonha e não perca a paciência. Peça para repetir e, se for preciso, escrever. O mais importante é que exista a comunicação. Grande parte dos surdos não é infeliz por serem surdos, ou melhor, por não ouvirem. Eles ficam infelizes ou irritados quando passam por situações nas quais se sentem expostos e dependentes.
ü  Exemplo: o surdo fica numa posição humilhante principalmente quando o ouvinte demonstra a má vontade para ajudar.

Ø  Se precisar falar com uma pessoa surda chame a atenção dela tocando em seu ombro ou braço (de preferência no ombro). O surdo não tem nenhum problema em se tocar, mesmo quando se encontram pela primeira vez. O toque é uma das maneiras de chamar a atenção da pessoa surda. O toque deve ser leve, e jamais tocar na cabeça ou nas costas. Isto seria extremamente inconveniente. Para os ouvintes, isso causa embaraço, pois estão acostumados com o contato sonoro.



   Foto: Claudia Hayakawa

Ø  Os surdos têm uma excelente percepção visual e percebem qualquer movimento ao redor deles. Isso pode ser aproveitado para se fazer um contato com eles. Os ouvintes que desconhecem a cultura surda, geralmente não entendem o sentido dos acenos e não reagem a eles.
Ø  Como todo cidadão, o surdo tem direito à informação. A ausência de legendas nos noticiários e em outros programas de TV impede o conhecimento dos fatos.
Ø  Os avisos visuais são sempre muito úteis para a independência do surdo. A comunicação fica ainda melhor se forem com ilustrações. Na falta deles, o surdo terá maiores dificuldades.
Ø  A iluminação, devido à comunicação essencialmente visual, é de extrema importância. Para o surdo, a ausência de luz representa a ausência de comunicação. O recurso da iluminação é usado para o surdo de várias formas.
ü  Exemplo: quando se toca a campainha da casa, acende-se um tipo, ou uma cor de lâmpada. Se o surdo não está ao alcance da sinalização luminosa, é possível que não abra a porta mesmo estando em casa. Por isso, não desista. Aperte várias vezes a campainha. Quando o bebê chora no berço, um sensor faz com que uma lâmpada de cor diferente da campainha acenda, identificando que o bebê precisa de algo.




    Foto: Claudia Hayakawa

Conhecendo melhor o surdo

Para o surdo, o contato com o mundo externo se dá através da visão. Por isso, a maioria dos surdos ao entrar em um ambiente, observa tudo e todos que estão no ambiente e olham ao redor com uma freqüência bem maior e com mais atenção do que os ouvintes. E a tendência de ficar com as costas viradas para a parede, numa posição defensiva; e se possível, num canto em que se posicione de frente para a porta para poder, com a visão, acompanharem todo e qualquer movimento. Se isso não for possível, olham freqüentemente para trás. O ouvinte não conhecendo essa característica, poderá interpretar equivocadamente essa postura. Também poderá causar incômodo para o ouvinte que desconhece a cultura surda, o olhar fixo e contínuo do surdo durante uma conversa, ou tentativa de comunicação, a fim de tentar entender o que o ouvinte está dizendo.

O surdo, no geral, tende a ser bem-humorado (é importante ressaltar que, como qualquer ser humano, o surdo possui alterações de humor e personalidade); gostam muito de piadas,  principalmente as que fazem referência à incompreensão da surdez pelo ouvinte. Podem descrever situações ou imitar pessoas com uma riqueza de detalhes e expressões impressionante, de maneira que se tornam excelentes atores enquanto simplesmente conversam. Para o ouvinte, tal prática requer muito treino e conhecimentos técnicos.
Quando os surdos estão participando de alguma atividade com um grupo de ouvintes e não há nenhum intérprete para auxiliá-lo, a tendência é copiar o comportamento dos ouvintes (se o ouvinte ri, o surdo ri), mesmo sem entender o que está acontecendo pelo medo de se sentirem socialmente excluídos.

  Foto: Claudia Hayakawa

Devido à falta da audição, o surdo tem dificuldades em receber informações no tempo e na forma adequada para o desenvolvimento afetivo, social e intelectual de forma saudável e satisfatória. Com isso, seu comportamento algumas vezes pode não condizer com os padrões estabelecidos pela sociedade e sua percepção do mundo pode ser equivocada.
Exemplo: Relato da mãe de um surdo que estava comemorando seu aniversário de quinze anos com alguns amigos em casa. Em um determinado momento alguns de seus amigos precisavam ir embora. O garoto os acompanhou até o ponto do ônibus. Chegando próximo ao ponto, eles viram uma viatura da polícia e saíram correndo. Os policiais percebendo a atitude dos jovens ligaram a sirene e saíram em perseguição, mas como a casa ficava próxima eles entram na casa e se esconderam. Os policiais tocaram a campainha e a mãe assustada sai e pergunta o que estava acontecendo. Os policiais relatam o acontecido e pedem para trazer os jovens para fora, caso contrário eles entrariam na casa. A mãe pede para esperarem um minuto, explica que os garotos são surdos e que chamaria os garotos para conversar. Quando a mãe traz os garotos para fora pergunta: - Por que vocês correram? Eles responderam que na televisão todas as vezes que as pessoas viam policiais saíam correndo então eles pensaram que tinham que correr também. A mãe que sabia Libras pôde traduzir para os policiais e explicar o contexto, que eles assistiam a filmes, e entenderam que deveriam agir da mesma forma que viram na televisão.

O conceito que o surdo tem de si mesmo é o que as pessoas (familiares, amigos, professores, médicos, intérpretes, etc...) dizem que ele é.
A família diz que ele é defeituoso, por isso o rejeita, a escola diz que ele é deficiente, a medicina, que ele é incompleto. E então o surdo não se aceita porque os outros não o aceitam. No geral, os surdos são muito autênticos, expressam seus sentimentos com muita facilidade e quando não trabalhados, amam e odeiam muito facilmente. São extremistas; distorcem com facilidade os assuntos e por tudo isso seu emocional fica seriamente afetado.

Na comunicação vale citar o relato de Emmanuelle Laborit  em seu livro : O vôo da Gaivota (1994 p.19...), que a ausência de linguagem entre zero sete anos provocara seu isolamento. “Creio que nada havia em minha cabeça, nesse período. Futuro, passado, tudo estava em uma linha do espaço de tempo. Mamãe dizia ontem... e eu não entendia onde estava ontem, o que era ontem. Amanhã também. E não podia perguntar-lhe. Sentia-me impotente (...). Havia a luz do dia, a escuridão da noite, mais nada”. Até os sete anos não conseguia se comunicar. “Até os sete anos, nada de palavra, nenhuma frase em minha cabeça. Imagens somente (...). Como tudo acontecia antes? Não tinha língua. Como pude me construir? (...). Pensava seguramente. Mas em que? Em minha fúria de me comunicar”.

Quando Emmannuelle descobre que existe uma língua em que pode se comunicar e experimenta dar nome às pessoas e as coisas, descobre seu próprio nome. Antes falava de si na terceira pessoa “ela o escuta, ela não o escuta” o eu não existia.  “Eu era ela (...). Por causa da língua de sinais pôde dizer: Eu Emmanuelle (p.51) tendo assim uma identidade (...). Descobria o mundo que me cercava, e era eu que me encontrava no interior do mundo.”(p.51).

Laborit afirma que a língua de sinais é fundamental para que de fato o surdo consiga se comunicar, obter informação e compreender o que acontece ao seu redor.

J.Schuyler Long, Diretor da Lowa School for the Deaf, The sign language (1910) “A língua de sinais, nas mãos de seus mestres, é uma língua extraordinariamente bela e expressiva para a qual, na comunicação uns com os outros e como um modo de atingir com facilidade e rapidez a mente dos surdos,  nem a natureza nem a arte lhes concedeu um substituto à altura. Para aqueles que não entendem, é impossível perceber suas possibilidades para os surdos, sua poderosa influência sobre a moral e a felicidade social dos que são privados da audição e seu admirável poder de levar o pensamento a intelectos que de outro modo estariam em perpétua escuridão. Tampouco são capazes de avaliar o poder que ela tem sobre os surdos. Enquanto houver duas pessoas surdas sobre a face da terra e elas se encontrarem, serão usados sinais”.

Em relação à escrita, nada melhor do que o próprio surdo para descrever o grande desafio e esforço que se apresenta no ato de escrever. Carlos Skliar em seu livro “A surdez: um olhar sobre as diferenças” (1998:57), relata um fato narrado por L de 40 anos:
“É tão difícil escrever, para fazê-lo meu esforço tem de ser num clima de despender energias o suficiente demasiadas. Escrevo numa língua que não é a minha. Na escola fiz todo esforço para entender o significado das palavras usando o dicionário. São palavras soltas elas continuam soltas. Quando se trata de pô-las no papel, de escrever meus pensamentos, eles são marcados por um silêncio profundo. Eu preciso decodificar o meu pensamento visual com palavras em português que tem signos falados. Muito há que é difícil ser traduzido, pode ser uma síntese aproximada.
Tudo parece um silêncio quando se trata da escrita em português, uma tarefa difícil, dificílima.  Esse silêncio é a mudança? Sim é. Fazer frases em português não é mesmo que fazê-las em Libras. Eu penso em Libras, na hora de escrever em português eu não treinei o suficiente para juntar numa frase todas as palavras soltas. Agora no momento de escrever, eu escrevo diferente. Quando eu leio o que escrevo, parece que não tem uma coisa normal como a escrita ouvinte, falta uma coisa, não sei o quê.
Não sei o que escrevo são palavras minhas, elas são exteriores, não fazem parte de meu contexto. Parece não cair bem na frase, parece que a escrita do pensamento não dita o que quero dizer. Vezes sem contas parecem dizer-me coisas sem sentido.”

* Texto organizado e elaborado por Lílian Vânia A. S. Olah com o objetivo de passear de forma     simples, prática e básica pela cultura surda; para melhor compreender o surdo e a sua cultura.